De hoje até domingo, trazemos histórias de amor que normalmente não têm voz. A primeira é a da Maria Rita e do Bernardo

Bernardo e Maria Rita (foto: Moysah Conceição)

 

Por: Carol Patrocinio

Quem é da quebrada sabe o que é ver gente olhando torto, atravessando a rua quando você passa ou querendo saber porque é que você tá naquele lugar que, pros outros, não é teu. A gente sabe como isso incomoda e faz a gente pensar duas vezes antes de fazer um monte de coisas.

Quem não é igual “todo mundo” sempre sofre isso. Mas a gente, que já passou tanto por essas tretas, não quer que mais ninguém se sinta assim.

Então por que é que a gente mesmo olha feio pra caras que namoram caras? Por que a gente acha que tudo bem dizer pra minas que se apaixonaram por outras minas que elas precisam de um cara ali no meio? Por que a gente acha que pode dizer pra alguém como deve se vestir, falar ou se sentir?

A gente sabe a merda que é sentir que não faz parte das coisas. E ninguém tem que passar por isso. Então, nesse Dia dos Namorados a gente resolveu fazer uma coisa diferente: vamos falar de amor entre pessoas a quem ninguém nunca dá voz.

A gente escolheu a Maria Rita e o Bernardo, que são um casal hétero formado por uma mulher bissexual e um homem transgênero (ele nasceu com genitais femininos e notou, no meio da vida, que aquilo não fazia o mínimo sentido); o Ygor e o Rafael, que são dois homens gays; os casais lésbicos Anna e Maya e Carol e Camila; e o casal hétero Eric e Gabriela.

O amor é sempre o mesmo. A vontade de estar junto, de se sentir amado e importante é a mesma, não importa orientação sexual, gênero, identidade de gênero, cor ou religião. E a gente quer mais é ver todo mundo envolvidão porque a gente acredita em toda forma de amar.

Maria Rita Casagrande e Bernardo Abreu

“Hoje eu tô em uma relação em que eu tô à vontade. E eu tenho uma série de problemas de não estar à vontade comigo”. Essa é a frase que fica na cabeça depois de ouvir todo o relato da Maria Rita sobre seu relacionamento. Quem não quer estar à vontade e se sentir em casa não apenas com si mesma, mas em um relacionamento?

Maria conheceu Bernardo quando ele ainda não tinha passado pela transição e se identificava como não-binário – nem homem, nem mulher. Naquele momento ela se identificava como lésbica. A história dos dois é cheia de amor, mas o que mais chama atenção é o respeito ao tempo de cada um entender as maiores verdades sobre si mesmo. Um processo doloroso e cheio de dificuldades. “A princípio eu fui uma mulher hétero e me esforcei muito pra me encaixar nesses padrões. Já na faculdade eu comecei a me relacionar com as mulheres, mas era difícil porque tinha alguma coisa que não fazia sentido. Eu só sabia muito por cima o que eram as mulheres trans e travestis. E aí eu descobri que existiam homens trans. E foi uma coisa pra pensar. A princípio eu não conseguia me entender como um homem. Eu não queria de jeito nenhum ser um cara por questões de machismo, por exemplo. E aí fui trabalhando em cima das afetividades que eu ia descobrindo. Eu fui descobrindo e aceitando a questão da transgeneralidade. Primeiro eu precisava me entender para depois entender essa coisa da sexualidade e da afetividade”, explica Bernardo.

Ter alguém ao lado que te respeita e tenta entender o que você passa – seja o racismo, o preconceito por ser da periferia ou por questões de gênero – torna mais fácil e nos impulsiona a seguir em frente. “A gente vive aterrorizado. Primeiro eu morro de medo por ser negra nesse país. Tenho medo do meu filho sair na rua porque é negro, do Bernardo morrer porque alguém não foi com a cara dele. A gente tem medo de estupro o tempo todo. A gente tá em um momento que se sente muito vulnerável e tiram de nós o direito de ter uma família”, explica Maria Rita.

O amor não tem forma, classe, cor ou orientação sexual. O amor é livre e flui de acordo com o coração. E o coração não entende regras criadas pelas pessoas.

Mas ele também não faz com que as dificuldades deixem de existir. Bernardo conta que não consegue nem comprovar residência porque não tem direito a um nome. “Se a gente faz o documento de uma união estável hoje e ele muda de nome, eu to eternamente casada com uma pessoa que não existe. São coisas que vem antes do direito a você trabalhar, poder casar… A gente não tem direito de viver. Porque aquilo que não tem nome não existe então é como se ele não existisse”, completa Maria Rita.

A chave de tudo talvez esteja aí: respeito. Conhecer o outro, entender quem ele é da maneira mais verdadeira possível e estar junto contra o mundo. O amor transforma e deixa a gente mais forte. “Se a gente passa por todas essas coisas é porque gosta muito um do outro. A gente poderia mentir, nada impede. Eu poderia dizer que ele é meu roommate. Mas eu não vou apagar a identidade dele. Eu o amo exatamente da forma como ele é. É uma questão de respeito e se é a pessoa que eu amo eu vou respeitar tudo nela”, diz Maria Rita.


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